O compadrio e a caixa-preta
Matheus
Pichonelli
Há quase um ano, o promotor da Defesa
do Patrimônio Cultural e Público do Amapá, Afonso Gomes Guimarães, deu início a
uma verdadeira via sacra para investigar possíveis casos de nepotismo nos
órgãos públicos do estado. Desde agosto de 2011 ele tenta obter informações
sobre a folha de pagamento dos funcionários da Assembleia Legislativa. Em vão.
Em todas as tentativas, esbarrou na falta de vontade dos deputados amapaenses e
do próprio Judiciário local.
Primeiro, solicitou os documentos ao
presidente da Assembleia, Moisés Reategui de Souza (PSC), que se negou a
repassar os dados.
Em seguida, ingressou com ações na
Justiça para acessar os dados dos funcionários em duas frentes: a própria
Assembleia e os bancos que realizam os pagamentos.
Em ambos os casos, obteve decisões
favoráveis em primeira instância. Diante dos recursos apresentados, o Tribunal
de Justiça barrou, no entanto, a empreitada.
Os dados da Assembleia continuam,
assim, numa caixa-preta inacessível – e joga para o centro das suspeitas os
próprios desembargadores. Dados obtidos por CartaCapital revelam que parentes
de cinco dos nove desembargadores da corte trabalham no Legislativo amapaense.
A prática pode indicar um exemplo
específico de nepotismo – quando autoridades usam a influência do cargo para
empregar parentes como assessores de órgãos públicos de outros Poderes. Uma
prática comum ainda no País, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e
que contamina decisões viciadas dos tribunais.
O exemplo do Amapá coloca em xeque as
formas de controle sobre o nepotismo, prática vedada pelo Supremo Tribunal
Federal desde agosto de 2008, quando foi editada a súmula vinculante número 13.
A medida coibiu a contratação de parentes de autoridades e de funcionários para
cargos de confiança, de comissão e função gratificada no serviço público.
O problema é, quase quatro anos depois,
as próprias autoridades ainda se negam a informar quem são, o que fazem e
quanto ganham seus funcionários.
A via sacra da Promotoria para ter
acesso aos dados no Amapá é simbólica. A ação civil pública escrita pelo
promotor Afonso Guimarães com pedido para a Assembleia disponibilizar dados
sobre seus servidores, é de outubro de 2011. No documento, ele citava o site
oficial da Casa como uma página que não “obedece aos dispositivos legais
relativos à transparência administrativa e em quase nada contribui para a
divulgação dos atos administrativos e para o favorecimento do controle social”.
O pedido foi atendido pela juíza Alaíde
Maria de Paula, da 4ª Vara Cível e da Fazenda Pública de Macapá. Por ordem da
magistrada, o presidente da Assembleia tinha cinco dias para apresentar as
folhas de pagamento de seu pessoal referentes ao período de dezembro de 2010 a
julho de 2011. A Assembleia recorreu ao Tribunal de Justiça, que cassou a
decisão em 23 de janeiro deste ano por ordem do desembargador Luiz Carlos – pai
do deputado federal Luiz Carlos Filho (PSDB-AP).
Em outra frente, o promotor tentou
obter as informações por meio dos bancos com os quais os servidores mantêm
contas. Os pedidos das ações cautelares foram atendidos pela mesma juíza. Dias
depois, o banco Santander conseguiu uma liminar no tribunal, em outubro de
2011, com o argumento de que as informações eram acobertadas pela proteção à
intimidade e sua divulgação dependeria da existência de “interesse público
concreto”.
Diante do impasse, o promotor Afonso
Gomes Guimarães disse ter protocolado um recurso no Superior Tribunal de
Justiça contra a decisão do TJ.
O relator do pedido no TJ foi o
desembargador Dôglas Evangelista – que, segundo documentos encaminhados à
reportagem, é marido e ex-cunhado de funcionários da Assembleia.
Evangelista é um dos
desembargadores do Amapá citados em inquérito da Polícia Federal após a
Operação Mãos Limpas – que em 2010 prendeu 18 pessoas, entre elas o então
governador Pedro Paulo Dias e secretários estaduais. Os magistrados eram
suspeitos de manter contatos e proferir decisões favoráveis a integrantes de
uma suposta quadrilha suspeita de desviar até 300 milhões de reais públicos.
Procurado, o desembargador não
respondeu aos questionamentos da reportagem encaminhados via assessoria de
imprensa. A Assembleia do Amapá também não respondeu desde quando e em quais
condições os parentes do desembargador trabalham na Casa (a lei não impede que
parentes de autoridades trabalhem em órgãos públicos desde que sejam
concursados).
O caso de Evangelista não é único.
Segundo os documentos, a Assembleia emprega ainda as cunhadas dos desembargadores
Mário Gurtyev e Carmo Antônio, além de Edinardo Tavares de Souza, diretor
administrativo da Assembleia, e filho do desembargador Edinardo Souza – também
citado no inquérito da Operação Mãos Limpas.
A lista à qual a reportagem teve acesso
mostra ainda que o filho e a mulher de outro desembargador, Agostino Silvério,
também estão na folha de pagamento do Legislativo. A mulher, identificada como
Jorlene Lima de Jesus Silverio, recebeu pagamentos de 6.410 reais em 15 de
julho do ano passado. Procurado, o desembargador também não esclareceu a
situação.
Para o advogado Jorge Hélio Chaves de
Oliveira, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o caso do Amapá é
apenas “uma caixa de ressonância, um eco do que acontece no Brasil”. Segundo
ele, dois problemas perpetuam as práticas que deveriam ser combatidas pela
súmula antinepotismo: a falta de transparência dos portais oficiais, como sites
dos tribunais de Justiça, e o “verdadeiro compadrio feudal de famílias que
ainda exercem verdadeiras ditaduras patrimonialistas dentro dos tribunais”.
“Há ainda desembargadores com parentes
nas prefeituras do interior, nas regiões metropolitanas, nas Câmaras
Municipais, Assembleias. Não há nepotismo cruzado porque não tem a troca. Mas
tem como bater nos cargos em comissão, fazer um grande inventário nesses cargos
em comissão, e saber onde está tudo. Como a pessoa, que é mulher do
desembargador, está aqui? Ela tem vida própria, era assessora, é da academia?
Se não, é exploração de prestígio.”
Essas informações, segundo Jorge Hélio,
tendem a ser acessíveis à medida que os sites oficiais cumpram a lei. Ou seja:
que os portais disponibilizem os atos de publicidade dos poderes públicos para
prestação de contas, orientação social ou caráter informativo. “Não é
admissível você abrir o site de um tribunal de Justiça, qualquer um, e ver ali
20 fotos do presidente. Essa coisa passa por uma simbologia civilizatória.
Todos falam: ‘é o meu tribunal’. É um vício patrimonialista.”
A opinião é compartilhada pelo jurista
Pedro Estevam Serrano, advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP
e colunista do site de CartaCapital. Para ele, a maioria dos sites oficiais de
tribunais e governos serve apenas para propaganda das autoridades, o que fere
os princípios constitucionais da publicidade. “A fiscalização passa pela
obtenção de mecanismos de transparência nesses portais”, defende.
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